Em sua nova dobra, financeirizada e neoliberal, os golpes do capitalismo incidem na própria vida, sua potência de ação criadora. Mas em face disso, irrompe outra modalidade de resistência
Um ensaio de Suely Rolnik* | Imagem: George Grosz, Eclipse, 1926 (detalhe)
[Título original: A nova modalidade de golpe de Estado: um seriado em três temporadas]
Uma paisagem sinistra instaurou-se no planeta com a tomada de poder mundial pelo regime capitalista em sua nova dobra – financeirizada e neoliberal –, poder que leva seu projeto colonial às últimas consequências, sua realização globalitária. Junto com este fenômeno, um outro, simultâneo, também contribui para o ar tóxico da presente paisagem: a ascensão ao poder de forças conservadoras por toda parte, cujo teor de violência e barbárie nos lembra, para ficarmos apenas no século XX, os anos 1930 que antecederam a segunda guerra mundial e os anos mais recentes de regimes ditatoriais, os quais foram se dissolvendo ao longo dos anos 1980 (é o caso, por exemplo, dos regimes militares da América do Sul e o governo totalitário da União Soviética). Como se tais forças jamais tivessem desparecido de fato, mas apenas feito um recuo estratégico temporário à espreita de condições favoráveis para sua volta triunfal.
Neoliberais e “neo”(?)conservadores unidos! Como assim?
À primeira vista, a simultaneidade entre estes dois fenômenos nos parece paradoxal: são sintomas de forças reativas radicalmente distintos, assim como são distintos seus tempos históricos. Além das diferenças mais óbvias que consistem no transnacionalismo de umas e no nacionalismo das outras, o alto grau de complexidade, flexibilidade, sofisticação e refinamento perverso, próprio do modo de existência neoliberal e suas estratégias de poder está a anos luz do arcaísmo tacanho e da rigidez das forças abrutalhadas deste neoconservadorismo – cujo prefixo “neo” só faz sentido porque articula-se com condições históricas distintas das anteriores. Se o convívio entre estes dois regimes de poder turva nossa compreensão, passada a perplexidade inicial, vai se tornando evidente que o capitalismo financeirizado precisa destas subjetividades rudes temporariamente no poder. São como seus capangas que se incumbirão do trabalho sujo imprescindível para a instalação de um Estado neoliberal: destruir todas as conquistas democráticas e republicanas, dissolver seu imaginário e erradicar da cena seus protagonistas – entre os quais, prioritariamente, as esquerdas em todos os seus matizes.
Uma coincidência de interesses de neoconservadores e neoliberais em relação a este objetivo específico permite sua aliança temporária. A torpe subjetividade destes (neo)conservadores é arraigadamente classista e racista, para não dizer colonial e escravocrata, o que os leva a querer cumprir este papel, sem qualquer barreira ética e numa velocidade vertiginosa. Quando nem bem nos damos conta de uma de suas tacadas, uma outra já está em vias de acontecer, geralmente decidida pelo congresso na calada da noite. Além disso, colabora para seu interesse nesta tarefa o fato desta ser muito bem remunerada pelo poder executivo. Este lhes oferece em troca avultosas somas de dinheiro para realizar projetos absurdos em suas regiões de origem e, com isso, ampliar seu apoio local. Instaura-se um campo de negociação entre Congresso e Executivo, no qual os deputados, em posição vantajosa, podem chantagear à vontade, exigindo mais e mais dinheiro para cumprir sua função de capangas. O exercício desta missão lhes proporciona um gozo narcísico perverso, a tal ponto inescrupuloso, que chega a ser obsceno. A esse gozo acrescenta-se a patética exposição de sua vaidade por terem de volta o poder em suas mãos, o que alimenta sua autoimagem de machos valentões que eles exibem como se trouxessem na lapela arcaicos e ridículos brasões. Mal sabem eles que com seu trabalho sujo, prepara-se o terreno para o livre fluxo do capital transnacional, cujos líderes, globais e locais, são os verdadeiros senhores do poder e que os eliminarão de cena tão logo se tornem desnecessários. É neste cenário que se dá o novo tipo de golpe, criado pela atual versão do capitalismo: um seriado que se desenrola em três temporadas.
Embora o roteiro do seriado que será aqui apresentado se baseie em sua versão brasileira, este é muito semelhante em suas versões na maioria dos países da América Latina (tendo sido a primeira no Paraguai em 2012). Ele traz igualmente elementos para abordá-lo em suas demais versões no resto do planeta, como na Espanha, na Polônia, na Hungria, na Áustria e na Rússia. Com variações de nuances para adaptar-se aos diferentes contextos, a estratégia do novo tipo de golpe de Estado tende a ser a mesma.
Roteiro do seriado
Na primeira temporada (que no Brasil tem início em 2005 com o “Mensalão”), se estabelece uma aliança entre, de um lado, os poderes Legislativo, Judiciário e Policial e, de outro, o empresariado nacional – mais direta a ativamente os grupos que detém o poder da mídia. A política e o direito encontram-se plenamente integrados (o que, aliás, não é novo no Brasil). Os juízes envolvidos na operação do golpe manipulam despudoradamente as regras constitucionais existentes – ou até as mudam se necessário –, em favor dos interesses políticos no poder, os quais eles não só compartilham, mas tem em sua defesa um papel central. São condenados à prisão acusados sem prova concreta (como é o caso de Lula), enquanto são considerados inocentes ou punidos com penas bem mais leves, acusados com base em provas escandalosas. Não há possibilidade alguma de prever as sentenças segundo as regras da justiça democrática, próprias de um Estado de direito; apenas consegue-se identificar os interesses políticos que as conduzem, e mesmo assim sem saber ao certo quais serão suas estratégias para justificá-las.
Sustentados por esta aliança e ocupando a maioria no Congresso Nacional, os capangas do capitalismo financeirizado dão o golpe que expulsa do governo seus líderes mais à esquerda. Usa-se para demonizá-los não só denúncias de corrupção não comprovada (é o caso de Lula), mas também sua suposta responsabilidade pela crise econômica do país, que na verdade é apenas um sintoma local da crise mundial (é o caso de Dilma). Mas o seriado do golpe não se encerra com a condenação de vários líderes do PT e do processo de destruição do imaginário democrático, culminando no episódio do impeachmentde Dilma (agosto de 2106). Uma vez concluído este primeiro trabalho sujo e já parcialmente destruído este imaginário, tem início sua segunda temporada. Embora outros elementos venham a ter o papel de réus ao longo do seriado do golpe, o personagem demonizado continuará paralelamente a ser protagonizado pelos líderes de esquerda – principalmente os do Partido dos Trabalhadores, tendo sempre Lula como foco privilegiado. Sua demonização atravessará todos os episódios até o final da segunda temporada do seriado, quando se consumará a farsa da condenação de Lula e sua consequente exclusão do processo eleitoral para presidência da República.
Segunda Temporada
Na segunda temporada do seriado do golpe, o foco será o indispensável desmonte da Constituição. Para prepará-lo micropoliticamente o script se concentrará em tornar bem mais aterrorizador o fantasma da crise econômica, assim como intensificar a desqualificação do imaginário progressista, já parcialmente conquistada na primeira temporada. O desmonte da constituição se dará por meio de um novo conjunto de trabalhos sujos a serem realizados pelos capangas. O primeiro será o bloqueio de gastos públicos: a Proposta de Emenda à Constituição, assim chamada a “PEC do fim do mundo”, promulgada em dezembro de 2016, congela os gastos públicos por vinte anos sob o argumento da crise econômica. Tal bloqueio incide nos subsídios para o desenvolvimento e nas verbas destinadas aos programas sociais, sobretudo à educação e à saúde. Além de desmontar leis promulgadas durante os governos petistas que ampliaram o acesso à educação e à saúde de qualidade para a maioria da população, o golpe desmontará igualmente a universidade pública, por meio de cortes de verbas de educação e pesquisa. O segundo trabalho sujo consistirá na indecente reforma laboral, que inclusive incidirá na educação ao atingir as universidades privadas (imediatamente após a promulgação da mudança de tais leis, várias destas universidades demitiram em massa seus professores, os substituindo por professores com salários miseráveis e sem direitos trabalhistas). O terceiro consistirá nas indecentes reformas do seguro social e da previdência e o quarto, na privatização dos bens e empresas estatais mais rentáveis, ou que serão tornadas rentáveis por meio de arranjos espúrios, de modo a ampliar a lista das privatizáveis cult. E quando os tais capatazes não conseguirem a maioria do Congresso para votar alguma ementa ou lei necessária a tal desmonte, condição para que o poder executivo possa efetivá-lo, entrarão rapidamente em cena as agências que detém as maiores bases mundiais de indicadores financeiros, as quais lideram a avaliação do mercado global de capitais e, portanto, a classificação de risco para os investimentos (como Standard & Poor’s e Moody’s Corporation). Sua operação consiste em rebaixar as notas da economia brasileira ou ameaçar fazê-lo, o que oferece poderosa munição para que as mudanças de políticas públicas que ainda sofrem alguma resistência no próprio Congresso sejam enfim votadas, sob ameaça de falência do país (é o que está em curso no Brasil em relação à previdência e que já ocorreu na Europa, com Portugal, Grécia, Irlanda e Espanha, que receberam o eloquente acrônimo: “PIGS”). E o Estado de direito irá tendo assim rapidamente destruídos os elementos de “res pública” ou de democracia social que o caracterizaram em sua arquitetura moderna (a qual, no Brasil, assim como em vários países do continente sul americano, começava apenas a instalar-se com os governos progressistas pós-ditaduras, justamente os alvos do novo golpe). O intuito é transformá-lo, no final do seriado, em Estado neoliberal, cuja função é estritamente focada naquilo que interessa ao capitalismo transnacional e seus cúmplices das elites locais: facilitar ao máximo a circulação de seus investimentos de modo a criar condições ideais para a multiplicação do capital investido e o mais velozmente possível.
Enquanto se desenrolam estas novas operações, os próprios capangas do capitalismo globalitário serão os próximos alvos das denúncias de corrupção, preparando-se o terreno para sua ejeção tão logo sua tarefa esteja concluída. Na última temporada do seriado do golpe, o novo regime jogará estes conservadores no lixo da história, sem o menor constrangimento. Esta é uma primeira diferença em relação aos golpes de Estado que se utilizaram do exército: embora estes tenham sido igualmente executados pelos conservadores (no caso, militares) e sob o comando dos poderes hegemônicos do capitalismo em sua dobra anterior (na época, principalmente em mãos dos Estados Unidos), naquele contexto o regime precisava de um Estado totalitário e, para isso, tinha que manter os conservadores no poder após o golpe e por um longo período.
Paralelamente, ainda nesta segunda temporada, enquanto se introduz na narrativa oficial as denúncias de corrupção contra os políticos capangas, o mesmo se faz com o empresariado nacional, incluindo os altos executivos. Poupa-se nesta operação os bancos, parcela do empresariado ligada ao capital financeirizado e que inclusive, neste mesmo momento, tem perdoada parcela significativa de suas dívidas com o governo. Visa-se sobretudo as grandes empreiteiras que, organizadas em cartéis, monopolizam a construção de obras públicas, não só no Brasil, mas também em países aliados dos recém depostos governos progressistas, sobretudo nos continentes latinoamericano e africano que constituem mercados promissores. A permanência em cena desta parcela do empresariado apenas interessa aos líderes do capitalismo globalitário enquanto precisem de sua cumplicidade não só para a destruição do imaginário de esquerda – e da defesa das leis democráticas que este sustenta –, mas também para trazer dados que, selecionados, respaldem e reforcem a ideia de que estamos diante de um eminente colapso econômico. Com este apoio, criam-se condições favoráveis para as privatizações e o extermínio de tais leis, principalmente as que concernem o trabalho. No que concerne o trabalho, no Brasil, isto não se limitará à sua precarização, mas chegará ao cúmulo de legalizar condições aviltantes até então consideradas pela Constituição como definidoras do trabalho escravo e passíveis de punição. Que se diga de passagem: a decisão de legalizá-lo confirma que tais condições persistem até hoje e não só nas zonas rurais; basta mencionar o tratamento dado aos imigrantes ilegais na indústria da moda. O objetivo de apressar-se a introduzir empresários e altos executivos como novos personagens vilões do seriado é preparar o terreno para tirá-los do comando, principalmente das obras públicas, assim que o direito às privatizações estiver instituído.
Com esta dupla ejeção – de políticos e empresários – e já tendo se instaurado no país uma grave crise institucional e econômica, acentuada pela paralisia das obras públicas resultante das prisões das figuras chaves do empresariado nacional que as comandavam, o terreno estará totalmente pronto para a chegada dos investimentos sem entraves do capital transnacional. Nesta segunda temporada do seriado, entre os dispositivos do golpe são particularmente importantes as cenas do ringue entre distintas máfias de políticos sórdidos, assim como entre eles e as máfias do elegante empresariado. “Premiados” por suas delações, eles se destroem mutuamente diante da sociedade que, noite após noite, assiste perplexa ao espetáculo grotesco da derrocada de ambos nas telas da TV. A esse espetáculo se tem acesso igualmente pelas redes sociais que se pode consultar a qualquer hora, assim como pelos jornais, que parte das classes médias e altas leem ao despertar. Com esta ampla e ininterrupta divulgação, a atenção de toda a sociedade passa a concentrar-se nas espantosas imagens e mensagens, escritas ou faladas, de negociações de falcatruas econômicas e políticas, clandestinamente captadas em telefonemas, e-mails e gravações, bem como em documentos entregues pelos delatores ou encontrados pela polícia nas devassas de seus escritórios e residências. É um verdadeiro show de psicopatia que chega a ser divertido pois nos lembra os mais hilários filmes B e seus canastrões. A triste diferença é que, neste caso, a narrativa ficcional baseia-se em dados da realidade. Se estes, por si só, provocariam uma total indignação, ao serem devidamente editados na construção da narrativa, cuja função é preparar o terreno para o golpe, eles tem o poder de gerar graves efeitos micropolíticos nas subjetividades: a propagação da insegurança e do medo de colapso.
Há realmente algo de novo no uso de narrativas ficcionais pelo poder?
É verdade que não constitui novidade o uso pelo capitalismo da manipulação pelo discurso, seja ele verbal ou imagético, por meio da construção de narrativas que demonizam o inimigo da hora, como estratégia micropolítica de poder para viabilizar e justificar seus projetos macropolíticos. Tal estratégia foi amplamente usada pelo regime desde sua fundação (basta citar a catequese, uma versão de narrativa ficcional, no modo palavras-de-Deus, único e universal), tendo se aprimorado com a advento dos meios de informação e comunicação de massa, no final do século XIX, que acompanhou a segunda revolução industrial. Neste contexto, além de ter sido um dispositivo central das estratégias de produção de subjetividade no século XX, foi amplamente usado pelo poder nos regimes totalitários, assim como na preparação dos golpes de Estado dos anos 1960 e 70. Porém o modo como atualiza-se este dispositivo de poder não é idêntico: aqui reside uma segunda diferença entre as duas versões do regime, industrial e financeirizada.
O avanço exponencial das tecnologias de informação e comunicação à distância a partir do final dos anos 1970, não só tornou seu uso micro e macropolítico mais sutil e poderoso, mas foi o que, em parte, viabilizou a própria conquista do poder globalitário pelo capitalismo, em sua nova dobra. As narrativas de propaganda realizadas pelo capitalismo industrial (igualmente arquitetadas e financiadas por uma aliança entre empresários e políticos) eram toscas, acessadas pelo rádio e pela televisão (cujo uso aumentou depois da segunda guerra mundial), assim como nos cinemas antes dos filmes. Já as novas tecnologias de comunicação permitiram um aprimoramento significativo deste dispositivo do poder: a sofisticação das linguagens e das técnicas de manipulação e publicidade (o que inclui uma profunda mudança da televisão), a multiplicação das mídias e o alcance mundial da divulgação das mensagens em tempo real. Se divulgar falsas informações tampouco é novidade e faz parte da composição das narrativas ficcionais impostas às subjetividades, no capitalismo financeirizado tal dispositivo se aprimora. Viabilizadas pelo desenvolvimento tecnológico de robôs que passam a agir na Internet, as chamadas fake-news não só viralizam, mas simulam sua legitimidade com infinitos likes instantaneamente produzidos por tais robôs, o que as faz parecer massivamente aceitas, intensificando e propagando sua ilusória credibilidade.
Tampouco são os mesmos nos dois contextos os focos privilegiados para produzir temor e insegurança e mobilizar a fúria conservadora. Nos anos 1950 e 60 do capitalismo industrial, o foco era o fantasma do comunismo propagado pela guerra fria: uma ameaça que encontrava respaldo na recente divulgação dos horrores totalitários do stalinismo, a qual trazia de volta à memória das massas os traumas provocados pelo nazismo e o fascismo, cujos efeitos ainda infectavam sua subjetividade. Projetava-se esse fantasma nos governos com tendências democratizantes (foi o caso de Jango, no Brasil), projeção cujos efeitos nas massas preparou o terreno para os golpes de Estado nos anos 1960 e 70. Entretanto, nos anos 1990, as experiências de governos com tendência à esquerda após o fim das ditaduras, mobilizaram ampla identificação nas camadas mais desfavorecidas da sociedade – sua grande maioria –, não sendo mais possível associá-los ao comunismo como um fantasma ameaçador, e menos ainda à sua versão totalitária, ao que se acrescenta o fim da URSS e a queda do muro de Berlim. É então esta identificação que a dobra financeirizada do capitalismo necessitará destruir. Para lográ-lo, elege-se a corrupção como foco para a demonização das esquerdas na narrativa a ser construída e midiatizada. Se a acusação de corrupção já foi e continua sendo amplamente usada pelo poder para eliminar seus inimigos, usá-la contra líderes de esquerda tem um adicional de eficácia: a destruição de sua imagem de honestidade e de uma sincera cumplicidade com a agenda social, uma das principais virtudes que lhes são atribuídas no imaginário dos que com eles se identificam, a qual os diferenciava dos demais políticos, que no país são tradicionalmente associados à corrupção. No caso específico de Lula, associá-lo à corrupção visa destruir igualmente a imagem de que sua origem de classe garantiria sua cumplicidade com as causas sociais. A ideia de que são todos “farinha do mesmo saco” faz com que à insegurança e ao medo, acrescente-se a decepção, gerando uma espécie de apatia por exaustão.
Mas o uso pelo regime colonial-capitalístico de estratégias micropolíticas para sustentar suas estratégias macropolíticas não se reduz à propaganda. Este é apenas um dos dispositivos de seu modus operandi micropolítico, o qual é muito mais amplo e complexo e, com desdobramentos e variações, é por ele praticado desde sua fundação no século XV. E tem mais: este é um dos elementos fundamentais de sua modalidade de poder.
Matriz micropolítica do poder colonial-capitalístico: o abuso da vida
A estratégia micropolítica do poder colonial-capitalístico consiste em investir na produção de um certa política de subjetivação, matriz do regime nesta esfera. Tal política tem como elemento fundamental o abuso da vida enquanto força de criação e transmutação, força na qual reside seu destino ético e a condição para sua continuidade. Isto inclui a potência vital em todas suas manifestações e não só nos humanos – sendo que nos humanos o abuso não se restringe à sua manifestação como força de trabalho, como se pensava no marxismo. O intuito do abuso é separar a subjetividade de sua potência vital, obstruindo seu acesso a tal potência e a destituindo assim de seu poder de escolha para conduzí-la, o que a torna dócil e submissa aos modos de existência necessários ao regime e à sua exploração.
No entanto, na nova dobra do regime, a intervenção nesta esfera refina-se e se intensifica. O abuso da força vital vai mais fundo: seu intuito não é mais simplesmente o de torná-la dócil e submissa, como o era no capitalismo industrial em suas primeira e segunda revoluções. Ao contrário, o intuito agora é estimular esta potência e acelerar e intensificar sua produtividade, mas a desviando de seu destino ético, para converter sua natureza de força de “criação” de novos modos de existência em resposta às demandas da vida, em força de “criatividade”, a ser investida na composição de novos cenários para a acumulação de capital (econômico, politico, cultural e narcísico). No lugar da criação do novo, o que se produz (criativamente e cada vez mais velozmente) são “novidades”, as quais multiplicam as oportunidades para os investimentos de capital e excitam a vontade de consumo. Embora tal vontade venha sendo mobilizada desde a dobra anterior do regime, ela encontra agora a seu dispor uma contínua explosão de novos produtos, cujas imagens – que lhe chegam como bombas por todos os lados, lançadas pelos meios de comunicação e informação –, alimentam sem cessar sua compulsiva voracidade. Ou seja, a potência vital passa a ser usada para a reprodução do status quo; apenas muda-se, criativamente, suas peças de lugar ou se faz variações sobre as mesmas.
Se o novo tipo de golpe de Estado não faz uso da força militar, não é apenas porque governos rígidos, totalitários e nacionalistas não lhe convêm. Além destas razões macropolíticas, há razões micropolíticas que funcionam segundo a mesma perspectiva: tampouco lhe convém a subjetividade rígida identitária própria de regimes autoritários que convinha ao capitalismo industrial. O regime capitalista anterior precisava de corpos dóceis que se mantivessem sedentários, cada um fixo em seu lugar, disciplinarmente organizados (como os operários na fábrica). Diferentemente disso, o capitalismo financeirizado necessita destas subjetividades flexíveis e “criativas” que se amoldem, tanto na produção quanto no consumo, aos novos cenários que o mercado não para de introduzir. Em outras palavras, o novo regime necessita produzir subjetividades que tenham a maleabilidade de circular por vários lugares e funções, acompanhando a velocidade dos deslocamentos contínuos e infinitesimais de capital e informação.
Esta é mais uma das razões pelas quais não interessa à nova dobra do capitalismo o uso da força militar em seus golpes de Estado; é com a força do desejo que os realiza micropoliticamente. Isto se faz por meio da corrupção do desejo, enquanto seus capatazes fazem o serviço bruto na esfera macropolítica. É por esta mesma razão que é também micropoliticamente que não interessa ao novo regime manter conservadores no poder após os golpes de Estado, e muito menos regimes ditatoriais e nacionalistas.
O surto conservador
Voltemos ao seriado do golpe. Mais para o final da segunda temporada, à manipulação das subjetividades acima descritas se acrescentará mais um dispositivo micropolítico de poder que incidirá mais direta e veementemente nesta esfera e em seu uso instrumental na esfera macropolítica. Para o cumprimento de tal tarefa, serão mais do que perfeitos os grosseiros capangas do neoliberalismo com sua mentalidade infame e sua ânsia de massacrar todos aqueles que não são seu espelho. É quando irrompe mais violentamente o surto conservador.
Apela-se mais fanaticamente ainda à moral igrejista, familialista e identitária que, embora presente desde o início no script do seriado, beira agora o delírio. Toma-se como alvo a cultura em seu sentido amplo: das práticas artísticas, educacionais, terapêuticas e religiosas (não cristãs) aos modos de existência que não se encaixam nas categorias machistas, heteronormativas, homofóbicas, transfóbicas, racistas, classistas e xenofóbicas. Com ampla divulgação pela mídia, certos tipos de práticas passam a ser associadas ao demônio, como o eram nos séculos da Inquisição as práticas de mulheres que foram pejorativamente chamadas de “bruxas”, qualificação que autorizava sua prisão, tortura e morte. (Isto, aliás, continuou acontecendo após a Inquisição – são mais de um milhão de mulheres assassinadas como bruxas desde então –, e continua se reproduzindo ainda hoje. Basta lembrar que é à figura da bruxa que se associou Judith Butler para atacá-la em sua recente visita ao Brasil. Chegou-se a queimar publicamente um boneco que a reproduzia em frente ao SESC, uma das instituições culturais mais respeitadas do país na qual se realizava o simpósio internacional que Butler ajudara a organizar). Tal dispositivo de manipulação das subjetividades preparará o terreno para efetuar mudanças nas leis vigentes nestes campos. Fiquemos em três exemplos, todos ocorridos no mesmo período (de meados ao final do segundo semestre de 2017).
O primeiro é a arte: certas práticas artísticas – as que trazem à tona questões de gênero, de sexualidade e de religião –, passam a ser desqualificadas e criminalizadas. Nesta operação mata-se dois coelhos de uma cajadada só: demoniza-se as práticas ligadas a estas questões que não se enquadram em suas formas dominantes e, com isso, demoniza-se igualmente a dignidade ética da arte em seu exercício ativo da pulsão criadora, neutralizando assim sua potência micropolítica. Tal potência consiste em tornar sensíveis as demandas da vida ao ver-se sufocada nas formas vigentes de existência individual e coletiva, quando estas perderam seu sentido pelos efeitos que os encontros com a alteridade mutante do entorno produziram nos corpos. Materializadas em obras, estas demandas vitais teriam o poder de contágio dos públicos que a elas têm acesso, o que tenderia a mobilizar a força coletiva de transfiguração das formas da realidade e de transvaloração de seus valores. Atacar a arte é atacar a possiblidade de irrupção social de tal força, dificultando ainda mais seu acesso pelas subjetividades.
O segundo exemplo são os movimentos que performatizam mutações das subjetividades, especialmente nos âmbitos da sexualidade e das relações de gênero (movimentos feministas, LGBTQI, etc). A operação neste caso consiste em mobilizar a volta aos valores da heterossexualidade monogâmica da família nuclear patriarcal como forma absoluta de laço social e de erotismo (se é que faz sentido manter esta palavra neste caso). O objetivo é interromper a propagação do processo pulsional de criação de novos modos de existir nestes terrenos. Um processo que se desencadearia pela urgência da vida de recuperar sua potência em tais terrenos, em cujas formas dominantes encontra-se debilitada.
O terceiro exemplo diz respeito aos negros e indígenas que, em diferentes proporções em função dos circuitos do tráfico de escravos africanos, formam a maioria nas sociedades das ex-colônias. Se o comportamento dominante em relação a estas camadas da população sempre consistiu em sua humilhação e estigmatização – o que inclui suas tradições culturais e, principalmente, a perspectiva que as conduz, segundo a qual estas atualizam-se em novas formas em função do contexto –, agora tal comportamento se exibe publicamente com orgulho, sem o menor pudor. No Brasil, isto se manifesta do lado dos negros na destruição em série de terreiros de Candomblé: a associação ao demônio desta prática religiosa de origem afro legitima os agentes de seu messacre, os quais o divulgam ampla e abertamente, exibindo-se orgulhosamente nas redes de comunicação e informação. Do lado dos indígenas, o alvo são suas terras, às quais estão indissociável e visceralmente vinculadas suas tradições culturais (além do fato óbvio de promoverem seu sustento). Se a tomada das terras que desde sempre lhes pertenceram nunca parou de existir desde o início da colonização, a operação atual consiste na abolição das leis que haviam demarcado terras a eles destinadas, seja das que lhes pertencem desde sempre, ou daquelas para onde foram levados após as demarcações – leis cuja promulgação pela Constituição Cidadã, de 1988, havia sido fruto de uma árdua luta das décadas anteriores. Agora é com o apoio da lei que os empresários rurais expulsam os indígenas de suas terras. Na maioria dos casos, como sempre, mata-se primeiro seus líderes, preparando assim o momento da expulsão da comunidade inteira, momento em que, se necessário, apela-se para o genocídio.
Se no terceiro exemplo, o das tradições culturais africanas e indígenas, o objetivo destas operações que compõem o golpe é mais obviamente macropolítico (a expropriação dos terrenos do Candomblé e das terras indígenas, assim como o ataque aos movimentos negros e indígenas que vêm se fortalecendo), basta colocá-lo lado a lado com os outros dois exemplos de operações, simultaneamente em curso, para nos darmos conta de que há igualmente neste dispositivo um objetivo mais sutil, micropolítico, indispensável para a preparação da mudança de leis nos campos da educação, da saúde, do direito à posse de terras e da preservação ambiental.
No campo da saúde é neste mesmo momento que deputados federais desenterram um projeto de lei que visa incluir a homossexualidade entre as doenças a serem tratadas. Com o hilário lema da “cura gay” se pretende legalizar terapias (psicológicas ou religiosas) cuja função é transformar a orientação sexual de todos aqueles cujas práticas escapem das categorias dominantes de gênero e sexualidade. Lembrando que já na década de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) descartou qualquer projeto que associe a orientação sexual a doença, e que no Brasil o Conselho Federal de Psicologia proibiu esta associação em 1999 e o Conselho Federal de Medicina, há mais de 30 anos – é no mínimo surpreendente, para não dizer estarrecedor, que a questão tenha voltado à baila no Brasil em pleno ano de 2017, provocando uma acalorada polêmica. Mas é menos surpreendente o retorno deste fantasma se o situarmos no universo de operações micropolíticas do roteiro do golpe: desta perspectiva, o fato de que tal projeto de lei tenha sido descartado não impede seu impacto como dispositivo micropolítico de poder que incide na produção de subjetividade.
No campo da educação, durante as discussões no congresso em torno da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) demoniza-se nos currículos escolares qualquer abordagem de temas como a política (o famoso lema: “Escola sem partido”), a identidade de gênero, a orientação sexual e as culturas africanas e indígenas. Aprovada em dezembro de 2017, na nova BNCC foram eliminados trechos que afirmavam a necessidade de um ensino sem preconceitos. Mais especificamente, foram excluídos mais de dez trechos que mencionavam as questões de gênero e sexualidade e eliminados da bibliografia textos que abordassem a mitologia dos orixás, com o argumento de que seu conteúdo seria demoníaco. Tais cortes do currículo escolar têm seu lastro nas operações micropolíticas mencionadas nos dois exemplos anteriores (LGBTQI e negros e indígenas) e participam da construção da mesma narrativa que agora tem nestas camadas da sociedade seu novo personagem vilão.
A mesma dimensão micropolítica das operações do poder neste campo está presente nos cortes de verbas de educação e pesquisa nas universidades públicas, acima mencionados. Se é fato que, historicamente, o acesso às universidades públicas no Brasil sempre foi privilégio das classes mais abastadas – o que só começou a mudar nos governos petistas –, o desmonte da própria universidade elitista denota que o golpe na educação não incide apenas na esfera macropolítica, na qual seu objetivo óbvio é eliminar o recém-conquistado acesso da grande maioria à educação. Seu objetivo micropolítico é enfraquecer o acesso à informação e à formação intelectual na sociedade brasileira como um todo, o que tem por efeito debilitar a potência do pensamento, essencial para decifrar as asfixias da vida em suas formas presentes e combatê-las, criando novos cenários. Faz igualmente parte da dimensão micropolítica do golpe na educação, os efeitos da nova lei trabalhista nas universidades privadas. Se é óbvia a meta macropolítica da demissão em massa dos professores – aumentar exponencialmente o lucro das empresas de educação, pagando menos aos professores e baixando o valor pago pelos alunos de modo a aumentar sua clientela –, sua meta é também micropolítica. Durante os governos petistas, com a melhora de qualidade de vida das camadas sociais mais desfavorecidas, estas passaram a frequentar universidades privadas. O objetivo micropolítico da demissão em massa dos professores não foi apenas o de baixar a ainda mais a qualidade de educação que lhes era oferecida por estas universidades, a coisa é mais perversa: tais universidades usaram a diminuição do custo do estudo como foco de suas campanhas publicitárias, amplamente veiculadas quase concomitantemente à tal demissão. De cunho incontestavelmente populista, a narrativa de tais campanhas tem por efeito levar esta camada da sociedade a acreditar que o acesso à educação teria sido ampliado. O mesmo discurso populista foi utilizado pelo governo federal para legitimar sua Base Nacional Comum Curricular, em farta campanha publicitária veiculada, várias vezes ao dia durante meses, por todos os meios de comunicação.
No campo do direito à terra, que inclui as leis ambientais e as que concernem os indígenas, no mesmo ano de 2017, o presidente Temer promulgou um decreto extinguindo a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca). Trata-se de uma área localizada entre o Pará e o Amapá que abrange 4,2 milhões de hectares, criada no final da ditadura militar para evitar que os minérios fossem explorados por empresas estrangeiras. Nesta reserva, vivem algumas comunidades indígenas, além do fato de que o Renca se localiza no “Escudo das Guianas”, área que envolve parte da Amazônia brasileira, a Venezuela e as Guianas. Neste escudo se encontra a maior extensão de áreas protegidas do mundo, com menos de 1% de desmatamento, além de aí viverem espécies que não existem em outros lugares do mundo. Do ponto de vista macropolítico, tal decreto que visava contemplar os interesses da bancada ruralista e abrir novas oportunidades de investimento para o capital internacional, foi um fracasso. Temer foi levado a recuar pela pressão de sua enorme repercussão negativa nacional e internacionalmente (principalmente por parte dos ambientalistas); tentou ainda editar um novo Decreto com texto similar, mas este foi questionado pela Justiça e enfim suspenso. Apesar do fracasso da operação na esfera macropolítica, fica nítido aqui que a operação micropolítica da desqualificação das culturas indígenas visava, entre outros objetivos, contribuir para seu sucesso. Mais amplamente, em tal decreto fica nítida a matriz micropolítica do regime colonial-capitalístico: o abuso da vida – não só da vida humana, nem da vida de uma região, mas do planeta como um todo.
O conservadorismo é imprescindível para o capitalismo financeiro globalitário
Agora, podemos esmiuçar mais precisamente a operação micropolítica da nova modalidade de golpe própria do capitalismo financeiro globalitário e a razão pela qual para realizá-la lhe é necessário insuflar o conservadorismo como um dispositivo essencial de poder. Na primeira temporada a fragilidade das subjetividades, decorrente da desapropriação de sua força de criação pelo abuso, é aguçada pela insegurança que lhes provoca a demonização das esquerdas no governo e o fantasma da crise. Na segunda temporada a insegurança se intensifica com a demonização das classes política e empresarial como um todo e o tom mais veementemente apocalíptico em torno da crise econômica, à qual se acrescenta a crise institucional que vem desagregando o Estado a olhos vistos. Isto faz com que as subjetividades tendam a agarrar-se a qualquer promessa de estabilidade e segurança e passem, por isso, a projetar seu mal-estar nas figuras de bode expiatório que desempenham o papel de vilão no roteiro do golpe, das quais os mocinhos irão salvá-las. Porém, nos episódios finais da segunda temporada, um passo a mais é dado na estratégia micropolítica. Até então o papel de vilão era desempenhado pelos políticos acusados de corrupção para que as subjetividades pudessem projetar seu mal-estar no Estado, assim como pelo empresariado sobre o qual podiam projetar seu ódio de classe. Agora, a estigmatização de modos de existência destoantes permite que se projete o mal-estar em segmentos da sociedade, que já não podem ser simplesmente encaixados nas categorias de classe.
É a própria alteridade que passa então a ser demonizada, o que leva a reforçar mais gravemente a já existente blindagem das subjetividades em relação à sua experiência vital. É que sendo esta composta pelos efeitos do outro no corpo, tais efeitos, agora demonizados, tornam-se perigosíssimos no imaginário e devem ser denegados a qualquer custo, para que não se corra o risco de absorvê-los. Isso tem o poder de desmobilizar ainda mais a potência de transfiguração da realidade coletiva, da qual a experiência de habitar a trama relacional tecida entre distintos modos de existência seria portadora, se as rédeas do destino da pulsão estivessem em nossas mãos. As condições estão dadas para que o desejo se entregue mais plena e gozosamente ao abuso colonial-capitalístico da pulsão vital.
Em suma, nos episódios finais da segunda temporada do seriado do golpe, enquanto intensifica-se a operação macropolítica de desmonte da constituição e da economia nacional, intensifica-se igualmente a operação micropolítica de produção de subjetividades entregues à cafetinagem do desejo. Com esta dupla operação indissociável, prepara-se a sociedade para a terceira e última temporada: a tomada do poder político e econômico pelo capitalismo globalitário. Ela estará enfim pronta para recebê-lo de braços abertos como o salvador “civilizado” que saneará a economia de sua falência e reestabelecerá a dignidade da vida pública, devolvendo ao país seu prestígio perdido e a serenidade a seus cidadãos. Fim do seriado. Golpe concluído.
A máscara da legalidade democrática
Para chegar a este programado gran finale do seriado, é preciso eliminar todo e qualquer tipo de estorvo que interrompa ou diminua a velocidade da circulação de capitais, de informação e de subjetividades por vários lugares e funções. Os obstáculos podem ser encontrados em qualquer rota do capital e são de ordens variadas e variáveis – pessoas, grupos, instituições, serviços, postos de trabalho, fronteiras, países, leis, imaginários, hábitos, modos de existência, etc. Sendo assim, eles não se encaixam em figuras fixas organizadas em pares binários por oposição, o que torna obsoleta a figura do “inimigo”, tal como ela se configura na tradição ocidental. Mas em seu jogo midiático perverso, o regime usa esta figura, vestindo seus obstáculos com a máscara do vilão do seriado, para torná-los alvo da vontade de destruição pelas massas. Isso dura um breve período, o tempo necessário para tirá-los da frente; e, rapidamente, novos obstáculos ocuparão o lugar de vilão.
O Estado de direito e o regime democrático estão entre os principais obstáculos macropolíticos ao capitalismo financeirizado globalitário. Para eliminá-los usa-se a mesma operação micropolítica que apela para a figura do inimigo; contudo, embora a operação tenha a mesma lógica, neste caso invertem-se os papéis. Aqui os obstáculos ao regime (o Estado de direito e a democracia) é que serão mascarados com o personagem do mocinho, enquanto o papel de inimigo caberá a seus detratores, verdadeiros ou ficcionais; um papel que no final da segunda temporada terá sido desempenhado por todos os protagonistas do poder nacional, político e econômico (não financeirizado). É então que o capitalismo transnacional apresenta-se como o único mocinho do planeta capaz de recuperar a legalidade democrática – personagem com o qual o regime se mascara no seriado do golpe de Estado, ocultando assim o fato de ser ele seu verdadeiro agente e que é precisamente este tipo de Estado que ele visa destruir.
A composição da máscara de legalidade democrática é sutil e astuta. A segunda temporada do seriado do golpe começa a ser veiculada pela mídia imediatamente após o final da primeira. Os scripts são idênticos, só mudam os personagens que desempenham o papel de vilões acusados de corrupção. Se, na primeira temporada, parte da sociedade brasileira ainda conseguia ver que se tratava de um golpe cujo objetivo era aniquilar a imagem dos políticos progressistas para tirá-los do poder, com a substituição dos protagonistas do papel de vilão na segunda temporada, vence na maioria a ideia de que a expulsão dos governantes progressistas havia sido uma ação imparcial e digna, visando a necessária moralização da vida pública. Tal ideia consegue inclusive contaminar aqueles que têm menos acesso aos direitos, parcela majoritária da população que havia sido favorecida pelos governos progressistas e os sentia como seus aliados. Neste final da segunda temporada do seriado, quando todos os políticos se tornam vilões, o inimigo passa a ser a própria política como um todo e, portanto, o Estado de direito. Esta operação teria, em princípio, uma tripla vantagem. A primeira é desacreditar o Estado em sua atual estrutura, democrática, para que seja mais facilmente reestruturado segundo a agenda neoliberal. A segunda vantagem é a despolitização da sociedade para que esta deixe de depositar em sua participação na democracia o mediador da defesa de seus direitos civis, já que esta passou a ser vista como intrinsecamente ligada à corrupção, onde todos são ladrões. O mais grave é que a despolitização na esfera do estado de direito leva de roldão a pulsão social de uma luta autônoma em relação ao Estado, seja ela macro ou micropolítica. A terceira vantagem é tornar as subjetividades ainda mais frágeis para facilitar seu abuso.
Em síntese
O novo tipo de golpe, próprio do capitalismo neoliberal globalitário, consiste num complexo conjunto de operações micro e macropolíticas, no qual pretende-se matar vários coelhos numa cajadada só – todos os coelhos que atravessam as vias, concretas ou virtuais, visíveis ou invisíveis, por onde circula o capital transnacional a cada momento. São eles: os políticos de esquerda e o imaginário progressista a eles associado (pelas dificuldades que impõem ao desmantelamento da constituição, às privatizações e à entrega do país ao capital financeirizado transnacional e seus comparsas locais), os políticos de alma pré-republicana e escravocrata (por seu arcaísmo nacionalista e identitário, sua ignorância e incompetência, e seu péssimo hábito de precisar de um Estado inchado para mamar em suas tetas), os líderes do empresariado industrial local (por manter investimentos na produção, desperdiçando assim oportunidades de aplicá-los na especulação), os líderes do empresariado nacional da construção das obras públicas (por impedir que o capital transnacional se aproprie plenamente dos grandes negócios locais neste setor) e, por fim, o próprio Estado em sua versão democrática e/ou nacionalista – tudo isso acompanhado micropoliticamente do desvio da potência coletiva de ação pensante criadora que se mobilizaria diante deste quadro intolerável.
Em síntese, a nova modalidade de golpe de Estado é, na verdade, não só um golpe contra a democracia e, portanto, contra a sociedade (em sua esfera macropolítica), mas, mais radicalmente ainda, é um golpe contra a própria vida – não só a vida humana, individual e coletiva, mas a vida do planeta como um todo (esfera micropolítica). E o capitalismo transnacional sai vitorioso e de mãos aparentemente limpas. Esta é, provavelmente, a apoteótica cena prevista para o final do seriado do golpe.
Entretanto, dois possíveis efeitos do seriado não estavam previstos em seu script. Ambos começam a manifestar-se no final da segunda temporada, em consequência da quebra do feitiço que as acusações contra Lula haviam gerado na primeira temporada e, sobretudo, do grau traumático a que chegou o desamparo em que se veem lançadas as subjetividades. São distintas as estratégias do desejo que se mobilizam diante do trauma. Fiquemos apenas nos dois polos extremos do amplo leque de tais estratégias, embora estas possam oscilar entre várias posições, além do fato de que os processos de elaboração têm o poder de deslocar posições iniciais. Num dos extremos, apelamos para estratégias defensivas que nos levam a agarrar-nos de unhas e dentes ao status quo: uma resposta patológica por termos sucumbido ao trauma, e que tem por efeito nos despotencializar. No outro extremo, amplia-se o alcance de nossa mirada, o que nos permite ser mais capazes de acessar os efeitos subjetivos da violência em nossos corpos, de sermos mais precisos em sua decifração e expressão e mais aptos a inventar maneiras de combatê-la. Mobiliza-se então a força criadora para transformar o status quo de modo que a pulsão vital cumpra seu destino ético: esta é uma resposta saudável que ao nos proteger de sucumbir ao trauma, mantém nossa potência e tende até a intensificá-la.
A primeira resposta, fruto de uma estratégia de desejo reativa, tende a gerar uma identificação das subjetividades com os conservadores, o que as leva a apoiá-los com euforia e fervor. Com o prolongamento da permanência dos conservadores nos governos na segunda temporada e seu crescente apoio pelas massas, apoio insuflado pelas estratégias do golpe, estes acabam sendo eleitos aos cargos legislativos, conseguindo assim estabelecer-se efetivamente no poder. Mais grave ainda é quando se elegem ao cargo de presidente da república, o que vem acontecendo em vários países. O exemplo mais significativo é o da vitória do brutamontes Trump para a presidência dos Estados Unidos, bufão psicopata e nacionalista ao extremo. É bom lembrar que o nacionalismo foi um dos elementos do discurso populista dos capangas do capitalismo financeiro, usado por ele para a construção da figura do “inimigo comum” que deve ser eliminado de cena, o que justifica e legitima o golpe (as políticas europeias anti-migratórias e o virulento anti-europeísmo, fenômenos que vem se manifestando atualmente, entram nesta mesma chave). Mas os capangas conservadores nacionalistas deveriam ser descartados assim que o golpe estivesse consumado: sua instalação no poder é o primeiro efeito colateral do seriado que não estava previsto no roteiro.
Já a segunda resposta, fruto de uma estratégia de desejo ativa, gera a ascensão de uma nova modalidade de resistência, que se cria coletivamente face à nova modalidade de poder. Este é o segundo efeito colateral do seriado do golpe que tampouco estava previsto no roteiro. Por ser portador de oxigênio para o ar mortífero que respiramos no presente, finalizemos com alguns comentários acerca deste segundo fenômeno.
A nova modalidade de resistência
Passados os primeiros capítulos da segunda temporada, na qual se conseguira instaurar a ilusão de que não se tratou de golpe, seus capítulos seguintes – onde se vê a destruição das conquistas democráticas, a penalização da criação cultural e a desqualificação da política como um todo – não terão o mesmo êxito. Cada vez mais gente, em mais setores sociais e regiões do país, passa a se dar conta do sério risco que o poder globalitário do capitalismo traz não só para a continuidade da vida da espécie humana, mas do planeta como um todo. O sinal de alerta faz com que tenda a cair o véu de sua ilusão, tecido pelo abuso. Instaura-se nas subjetividades um estado de urgência que as faz batalhar para abrir o acesso à experiência subjetiva de nossa condição de viventes e retomar em suas mãos as rédeas da pulsão. Isto leva o desejo a deslocar-se de sua entrega ao abuso e a agir no sentido de transfigurar o presente, impedindo que a carnificina prossiga.
O fato de que, em sua nova dobra, fique mais escancarado que o capitalismo incide na esfera micropolítica dá origem a uma nova modalidade de resistência: surge a consciência de que a resistência tem que incidir igualmente nesta esfera. Isto aparece nos novos tipos de movimento social que vêm desestabilizando aqui e acolá o poder mundial do capitalismo financeirizado na determinação dos modos de existência que lhe são necessários. A propagação deste tipo de resistência, que se intensificou após o tsunami dos ditos golpes de Estado provocados pelo novo regime por toda parte, tem surgido principalmente entre as gerações mais jovens e, mais contundentemente, nas periferias dos grandes centros urbanos. Nestes contextos, destacam-se especialmente os citados movimentos das mulheres (numa nova dobra do feminismo), dos LGBTQI (numa nova dobra das lutas no campo da homossexualidade, transexualidade, etc, na qual estas se juntam em torno de alguns objetivos e refinam suas estratégias) e, também, dos negros (numa nova dobra de suas lutas anti-raciais). A estes movimentos somam-se as lutas por moradia e o combate dos indígenas, cada vez mais amplo e articulado – em ambos, uma forte atuação na esfera micropolítica agrega-se à sua tradicional atuação na macropolítica. Neste novo campo de batalha, cada um destes movimentos ganha novas forças.
A irrupção destas novas estratégias de combate nos ajuda a ver que o horizonte do modo tradicional de resistência das esquerdas tende a reduzir-se à esfera macropolítica e que esta redução seria uma das causas de sua desorientação e impotência frente ao atual estado de coisas. Tal entendimento tem o poder não só de nos tirar da paralisia melancólica fatalista à qual nos faria sucumbir a sombria paisagem que nos rodeia, bem como de nosso ressentimento com as esquerdas, mas também de nos permitir uma reaproximação das mesmas. Isto pode ter por efeito um aprimoramento dos instrumentos de resistência em ambas as esferas, micro e macropolítica.
O seriado do capitalismo financeirizado começa bem antes das três temporadas focadas em seus golpes de Estado e, certamente, será bem longa sua terceira temporada, em cujo roteiro parece estar prevista a instalação plena do poder globalitário do regime colonial-capitalista. Seus efeitos serão delineados coletivamente nos embates entre diferentes forças das mais reativas às mais ativas. Forças reativas que, em diferentes graus e escalas e com diferentes tipos de expressão, promovem o abuso da vida em sua potência pulsional de criação – seja atuando no personagem do vilão que abusa ou no da vítima que se deixa abusar. E forças ativas que, em diferentes graus e escalas e com diferentes tipos de expressão, promovem sua afirmação transfiguradora, dissolvendo tais personagens e, com eles, a cena em que atuam. Ninguém é permanentemente ativo ou reativo, tais posições oscilam e se mesclam ao longo da existência individual e coletiva. O que importa do lado das forças ativas é o trabalho incansável que consiste em combater as forças reativas em nós mesmos e em nosso entorno, cujo sucesso jamais estará garantido e tampouco será definitivo.
Impossível prever o desfecho (sempre provisório) deste embate em que estamos envolvidos e que prosseguirá na terceira e última temporada do seriado. Mas há um alento no ar que nos vem da experiência de liberação da pulsão das sequelas de seu abuso colonial-capitalista. Apesar desta experiência ser relativamente recente, ela nos permite imaginar outros cenários e agirmos em sua direção. Isso nos faz acreditar que é possível despoluir o ar ambiente de sua poeira tóxica, pelo menos o suficiente para que a vida volte a fluir. O tratamento de tal poluição é micropolítico: um trabalho coletivo de descolonização do inconsciente, cujo foco são as políticas de produção de subjetividade que orientam o desejo e as consequentes formações do inconsciente no campo social. Esta é a tarefa que nos desafia no presente. Depois é depois: novas formas de existência se instalarão, com novas tensões entre diferentes qualidades e intensidades de forças ativas e reativas e seus confrontos, os quais convocarão novas estratégias de resistência, num combate sem fim pela vida.
São Paulo, 2017/2018
P.S: Em 24 de janeiro de 2018, poucos dias após a finalização da escrita deste texto, Lula foi praticamente excluído da vida pública, condenado à prisão por doze anos, quando então terá 84 anos. “Praticamente”, porque embora ainda falte o recurso de seus advogados a duas instâncias da Justiça, podemos prever que estas manterão as decisões de condená-lo e legitimarão sua imediata prisão. Com isso, já podemos dizer que o golpe de Estado “propriamente dito” foi bem sucedido. Mas o maldito seriado do golpe não termina aqui: apesar do Estado propriamente dito ser um de seus objetos privilegiados, ele não é o único. Terá sido a eliminação de Lula o último episódio de sua segunda temporada? Neste caso, a partir de agora assistiríamos a sua terceira temporada: será seu roteiro próximo ao que foi aqui anunciado? Haverá outras temporadas mais? Jogos de adivinhação não são bem-vindos neste tipo de contexto. Além de não podermos prever exatamente seu script, efeitos não previstos podem surpreender seus autores e a nós trazer alento, como já vem acontecendo. Apesar do seriado ser ininterruptamente campeão de audiência, e o golpe propriamente dito ter sido vitorioso, o tiro pode sair pela culatra. Isso fica mais uma vez notório na reação da maioria da sociedade brasileira à condenação de Lula. Se sua vitória foi celebrada pelas elites internacionais do capitalismo financeirizado, assim como por suas elites locais, do lado de suas camadas expoliadas (a grande maioria), assim como das camadas politizadas das classes médias, no Brasil e no exterior, a reação foi oposta. Por ser claramente injusta e fruto de uma cruel armação, a condenação indignou tais camadas e gerou um efeito bumerangue: reativou-se poderosamente a força da presença de Lula em seu imaginário – no qual ele já vinha resgatando seu lugar de liderança digna, mesmo entre aqueles que tem críticas a seu governo. Basta lembrar que se o seriado do golpe, no início de sua primeira temporada, havia conseguido fazer com que os 80% de aprovação de seu governo, baixassem para 12% de intenções de voto, na segunda temporada seu número já passara a ser suficiente para que ele vencesse as eleições para a presidência da república em 2018, provavelmente já no primeiro turno.
Mas, como sugere o texto em sua frase final, a história humana (como a do cosmos) nunca chega ao fim. A ideia de fim, seja ele um gran finale ou o anúncio do apocalipse, é herdeira da ideia nefasta de paraíso e de seu corolário, o inferno. São estes os dispositivos mais antigos em nossa civilização para a instrumentalização da pulsão e a consequente manipulação das subjetividades. Tais figuras encobrem a pulsão com um duplo véu de equívocos costurados um ao outro. O primeiro véu-equívoco é o de que um dia a vida se estabilizará definitivamente (seja – e não por acaso – após a morte ou seja nesta existência, com os substitutos do par paraíso-inferno propostos na modernidade). Um véu que encobre suas inevitáveis turbulências face à quais atuaria sua (em nós) vontade de perseveração. O segundo véu-equívoco é de que só terão o privilégio deste suposto destino da vida aqueles que entregarem as rédeas da pulsão a Deus (ou seus substitutos na modernidade), os quais para merecê-lo terão que submeter-se às ordens da Igreja (ou de seus substitutos na modernidade). Não há mais tempo a perder com nossa nefasta submissão a tais ideias, próprias da redução do pensamento à esfera macropolítica. Impõe-se a nós a exigência de nos livrarmos deste reducionismo na condução de nossas estratégias de resistência, expandindo-as de modo a englobarem a esfera micropolítica. Esta é a condição para ativarmos a imaginação criadora a fim de que oriente o desejo na direção de ações efetivamente transfiguradoras.
—
* Com agradecimentos a Josy Panão, Paul Preciado, Pedro Taam, Maria Alves de Lima, Rolf Abderhalden e Tício Escobar pelos ricos aportes trazidos em sua cuidadosa leitura deste texto e a todos aqueles que tem se dedicado a decifrar a nova modalidade de golpe e de poder do capitalismo contemporâneo.
Fuente: outraspalavras
[…] O seriado do golpe em três temporadas // Suely Rolnik […]
Bom poder fazer essa radiografia do golpe.
Também vislumbrar os desdobramentos que exigem presença atenta e forte.